Conheça o cooperativismo de plataforma

Os negócios de plataforma – aquele que utilizamos um aplicativo para solicitar um serviço – é uma tendência no mundo. E, em diversas parte do mundo, o cooperativismo continua mostrando sua capacidade de surfar as novas ondas do mercado. E com as plataformas não é diferente. Por isso, o Sistema OCB, que apoia a ideia, fez questão de inserir esse tema na 14ª edição de seu Congresso Brasileiro do Cooperativismo, realizado em Brasília, em maio deste ano. O assunto também é um dos destaques na nova edição da revista Saber Cooperar. Confira:

Plataforma para o desenvolvimento

Existe um movimento mundial de conscientização do enorme potencial que o cooperativismo tem para alavancar a economia digital e colaborativa. Há quem defenda que diversos unicórnios do mercado de startups (jovens empresas de base tecnológica avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) deveriam ser cooperativistas.

O motorista desliza as mãos pelo volante. A atenção dos olhos que miram as ruas de Brasília é voltada para a tela do celular, posicionado na saída de ar. A notificação avisa: alguém solicita os serviços do rapaz, e o carro de lataria vermelha e reluzente transforma-se em instrumento de trabalho. Ezequiel Avelino, 24 anos, estudante de Gestão Pública, é motorista de aplicativo de transporte de passageiros.

Em janeiro deste ano, migrou da estatística do desemprego que, no primeiro mês de 2019, abarcava 12,7 milhões de brasileiros, segundo o IBGE, para ser um dos mais de 37 milhões de trabalhadores informais do país. Como milhares de cidadãos, a ocupação foi a forma encontrada por Ezequiel para se sustentar, custear a mensalidade da faculdade e pagar a parcela do automóvel.

O último trabalho de carteira assinada foi em uma floricultura, em 2017. Após um ano fazendo bicos no mercado de eventos, ele decidiu apostar no aplicativo. Desde então, acorda cedo, limpa o automóvel – em casa, para economizar com gastos em lava a jato –, abastece até a boca do tanque de combustível e parte para o expediente. Antes de completar a primeira semana, dirigindo de seis a oito horas por dia, tinha transportado cerca de 200 passageiros e os rendimentos ficaram em torno de R$ 1 mil – valor bem próximo do que ele demorava um mês para embolsar em um ofício formal.
“Dirigindo para os aplicativos, posso alternar os meus horários. Se eu não conseguir trabalhar de manhã, vou à noite. Se eu não lucrar bem na semana, posso ir no sábado e no domingo”, explica.

Só existe um problema: Ezequiel está dividindo o resultado de seu trabalho com os donos dos aplicativos que utiliza, perpetuando um modelo de trabalho que explora a mão de obra do trabalhador em busca do maior lucro possível, sem lhe dar nenhuma garantia ou segurança jurídica.

Ao perceber essa realidade, pesquisadores dos Estados Unidos e da Europa começaram a se perguntar: não seria mais justo que os motoristas fossem os verdadeiros donos do negócio, já que possuem o carro e fornecem a mão de obra? E se os princípios cooperativistas, consolidados na busca por relações mais dignas, justas e solidárias, fossem aliados à veia democrática da internet, nascida da noção pública de propriedade coletiva? E se, no contexto de economia compartilhada, pudéssemos desenvolver alternativas de negócios conduzidas por ideais comunitários? E foi para responder a essas perguntas que surgiu um novo conceito: o cooperativismo de plataforma – proposta de empreendimento que combina os princípios e os valores do cooperativismo com o imenso potencial disruptivo das novas tecnologias da informação.

O COMEÇO DE TUDO

O conceito “cooperativismo de plataforma” foi utilizado pela primeira vez por Trebor Scholz, professor de cultura e mídia associado à The New School autor do livro Cooperativismo de Plataforma. Ele esteve no Brasil em maio especialmente para o 14º CBC. Em palestra que lotou um dos auditórios do evento, ele afirmou: o cooperativismo é o modelo de negócios capaz de tornar mais justas as novas relações de trabalho impostas pelo “ubercapitalismo” – nova onda capitalista caracterizada pela supressão do Estado como mediador entre o capital e o trabalho, um modelo que transforma todos em trabalhadores individuais, apartados entre si, cada qual lutando por sua sobrevivência.

Scholz alerta que por trás de todo o conceito “descolado” e engajado da economia compartilhada – que vende aos cidadãos a ideia de que é possível ganhar mais, tendo liberdade de escolher quando e por quanto tempo se quer trabalhar, com a vantagem de não estar subordinado a um chefe direto – estão a crise econômica, o desemprego e a necessidade de complementação de renda. Uma realidade bem conhecida dos brasileiros nos últimos anos.

Ainda segundo o autor, essa nova forma de trabalho ofertada por alguns aplicativos de serviço pode ser, na verdade, uma armadilha para a precarização dos direitos do trabalho. “Eu estudo as mudanças trazidas pela internet no mercado de trabalho desde 2008 e fui percebendo que as relações estabelecidas entre algumas plataformas de serviço e as pessoas são uma nova forma de exploração da mão de obra do trabalhador ainda mais perversa que a anterior, pois tira todos os direitos e benefícios, maximizando ao extremo o enriquecimento dos donos dessas plataformas”, critica.

De fato, de acordo com o IBGE, o rendimento de um trabalhador informal é, em média, 40% menor do que de quem atua com carteira assinada. Também é importante lembrar a falta de garantias para os funcionários nessas plataformas de compartilhamento. O que mais preocupa Ezequiel Avelino, motorista de aplicativos, é a segurança. Em uma situação de sequestro ou roubo, enquanto estiver dirigindo, o prejuízo é 100% do dono do automóvel. Por isso, ele pondera ao aceitar corridas em determinados horários e lugares, o que pode colocar em risco sua pontuação nos apps. Em poucos cliques – medido em estrelinhas que variam de uma a cinco – está na mão do consumidor o poder de classificar um motorista da plataforma. Quem ficar abaixo de uma média de corte, que controla a qualidade dos funcionários, pode ter o cadastro suspenso ou cancelado.

POR UMA RELAÇÃO MAIS JUSTA

Outro papa do cooperativismo de plataforma é o professor de estudos de mídia da Universidade do Colorado, Nathan Schneider, coautor do livro Nosso para hackear e possuir: a ascensão do cooperativismo de plataforma, uma nova visão para o futuro do trabalho e uma internet mais justa. Em entrevista exclusiva à Saber Cooperar, ele definiu o cooperativismo de plataforma como “uma comunidade transnacional de usuários-trabalhadores. Uma nova geração de pessoas que entram no movimento cooperativo e tentam usá-lo para criar uma economia on-line mais justa, responsável e democrática”.

Scheider defende que a natureza do compartilhamento de informações, software de código aberto, colaboração distribuída e comunicação rápida da internet são propícios não apenas para as práticas cooperativistas, como trata- -se de uma oportunidade de renovar o espírito transformador da economia cooperativa, fundada há quase dois séculos.

Também entusiasta do potencial transformador da internet para o cooperativista, o advogado, professor-doutor e diretor-geral da Faculdade de Tecnologia do Cooperativismo (Escoop), Mário de Conto, tem pesquisado sobre o conceito no Brasil, com o incentivo do Sistema OCB. Para ele, a modalidade poderia melhorar o desenvolvimento local, sob a forma de trabalho democrático e colaborativo. “Tratam-se de iniciativas em que os trabalhadores são proprietários das plataformas, tomam as decisões de maneira democrática através de mecanismos digitais e a distância, de forma muito diferente da experimentada nas cooperativas tradicionais”, explica o pesquisador.

Na visão de Conto, as “CoopTechs” (cooperativas de base tecnológica) podem não apenas incluir quem está fora da digitalização na troca de serviços, como ajudar a reduzir as desigualdades e a concentração do poder que está nas mãos dos agentes que detêm o capital (o software, hoje em dia). “Nesse contexto, o cooperativismo de plataforma tem como principal impacto no eixo social viabilizar a inserção de trabalhadores em plataformas digitais nas quais eles tenham maior possibilidade de Modelo colaborativo de produção intelectual que promove o livre licenciamento e a redistribuição universal do produto sem a necessidade de se pagar uma licença comercial para isso, definir suas margens de retorno e fazer sua autogestão”, avalia.

Ao redor do mundo, essa ideia pegou. Segundo Trebor Scholz, já existem pelo menos 350 cooperativas de plataforma atuando em 26 países, incluindo o Brasil. Por aqui, existem grupos de trabalhadores se organizando dessa maneira, embora nenhuma esteja formalmente registrada como cooperativa. Um bom exemplo é a Cataki – aplicativo que conecta catadores de resíduos a quem produz lixo, ou seja, todos nós. Ao unir as duas pontas, a plataforma melhora a qualidade de vida dos catadores, tirando-os dos lixões e das ruas, facilita a coleta dos materiais reciclados, aumenta a produtividade desses agentes ambientais e, de quebra, conscientiza as pessoas sobre a importância da reciclagem. Trebor está, inclusive, investindo na ideia, que considera escalável, ou seja, com alto potencial de crescimento não só no Brasil, mas no mundo.

Disposto a fomentar a abertura de cada vez mais cooperativas de plataforma ao redor do mundo, Scholz ajudou a fundar uma organização focada no apoio a essas instituições: o Consórcio para o Cooperativismo de Plataforma (The Platform Cooperativism Consortium). O grupo apoia esse modelo de negócios por meio de pesquisas, capacitações, consultoria legal, mapeamento de melhores práticas, suporte técnico e financiamento. O Google, por exemplo, doou US$ 1 milhão para financiar cooperativas de plataforma ao redor do mundo. “Eu estive na Suécia, na Inglaterra, na Itália, na Espanha, no Canadá, na Indonésia, em Tóquio, na Índia e aqui no Brasil. É impressionante como em todos esses países existe o desejo de criar modelos de trabalho mais cooperativos”, disse o norte-americano.

ESPAÇO NO BRASIL

Sim, mas ainda é pouco explorado. Temos um longo caminho a percorrer, cheio de desafios, até a consolidação de um mercado de economia digital cooperativista. “Quanto mais precária é a relação de trabalho de um país, maior é o interesse pela implantação das cooperativas de plataformas”, analisa Trebor Scholz. Segundo ele, aqui no Brasil existem muitas oportunidades nas áreas da educação, da saúde, dos transportes. “O que percebo, tanto aqui quanto em outros países, é que o principal obstáculo à constituição dessas cooperativas ainda são as pessoas. É difícil reunir um grupo, sentar todos em uma sala e fazê-los fechar um acordo. Elas ainda não sabem abrir mão das suas vontades pessoais em prol de um bem maior. Esse é o principal desafio do cooperativismo de plataforma em todo o mundo”, lamenta.

Já o brasileiro Mário de Conto acredita que faltam instrumentos na legislação brasileira para apoiar o desenvolvimento de iniciativas como essas. “Analisando as características da Lei Geral das Cooperativas, evidentemente, há desafios que concernem à novidade do modelo, como formas de efetivar a participação democrática e o processo de tomada de decisões em um contexto digital”, pondera.

BENCHMARKING INTERNACIONAL

A proposta da incubação é apoiar novos empreendimentos com suporte técnico, jurídico e contábil, muitas vezes oferecendo consultorias e mentorias especializadas na potencialização de um negócio. E foi justamente esse modelo que resultou na criação da Up and Go – cooperativa de plataforma criada para oferecer emprego e renda às mulheres de uma comunidade de imigrantes, em Nova York.

A Up and Go possui, hoje, cerca de 40 cooperadas. Graças à plataforma, pela primeira vez desde que chegaram à América, essas mulheres conseguiram uma remuneração justa por seu trabalho. “Antes de fazerem parte da cooperativa, elas ganhavam muito mal e não tinham garantia de serem pagas pelo serviço que prestavam. Às vezes, limpavam a residência e o dono dizia estar sem dinheiro para pagá-las na hora. Outras vezes, pagavam as passagens para ir até a casa do cliente e, ao chegar, eram avisadas de que ele tinha desistido. Com isso, tinham um prejuízo grande, porque não eram ressarcidas pelo deslocamento”, recorda Sylvia Morse, gerente de projeto do Center for Family Life (CFL) – organização sem fins lucrativos que realiza a incubação de cooperativas de plataforma na cidade norte-americana.

Desde 2006, o CFL capta fundos e oferece suporte técnico e financeiro à criação de cooperativas de plataforma nas áreas de serviços de limpeza e cuidado de crianças pequenas. “Nossa equipe trabalha para ajudar esses trabalhadores a constituírem sua cooperativa, ajudando a definir como devem ser o site, o aplicativo, o atendimento aos clientes, a política de preços e as assembleias de cooperados”, resume Sylvia, que também participou como palestrante do 14º CBC.

No caso da Up and Go, por exemplo, cada cooperada recebe 95% do valor pago pelos clientes. Os outros 5% são revertidos para o fortalecimento da plataforma. “Antes, quando trabalhavam como empregadas de outros sites que oferecem serviços de limpeza, elas recebiam bem menos por hora trabalhada. E isso, apesar de o cliente pagar mais caro que na Up and Go pelo serviço”, constata a gerente do CFL.

Além de ganharem mais como cooperadas e de serem as donas do próprio negócio, as mulheres da Up and Go utilizam os 5% destinados para a plataforma para fortalecerem o próprio negócio e para garantirem alguns benefícios importantes para elas, como cursos de inglês e capacitação profissional. “A cooperativa empodera essas mulheres e muda as vidas delas e a de suas famílias”, comemora Sylvia. Gostou da proposta do cooperativismo de plataforma? Quer saber mais sobre o assunto? Baixe agora o livro de Trebor Scholz sobre o assunto. Conheça todas as diretrizes prioritárias para o cooperativismo relacionadas à inovação. Elas foram definidas por 1.300 cooperativas brasileiras durante o 14º CBC.

De acordo com a norte-americana, as cooperativas têm impactado tão positivamente Nova York que a cidade foi a primeira dos Estados Unidos a criar um fundo exclusivo para o financiamento desse tipo de empreendimento. “As cooperativas de plataforma têm ajudado a incluir públicos que nem sempre encontram boas oportunidades de trabalho no mercado formal, como as mulheres, os negros e os imigrantes. Por isso, elas têm recebido suporte de entidades públicas e privadas para se desenvolverem no meu país”, constata.

Sylvia acredita que essas incubadoras de cooperativas de plataforma poderiam funcionar também no Brasil. “Vocês têm uma organização que cuida especificamente do cooperativismo”, diz, referindo-se ao Sistema OCB. “Esse é um primeiro passo importante, porque já existe um centro de referência para os trabalhadores que desejem montar uma cooperativa no país. O próximo passo é buscar apoio de outras organizações públicas e privadas para criar um ecossistema favorável à criação de cooperativas de plataforma no Brasil”, conclui.

NÚMEROS

  • Existem pelo menos 350 cooperativas de plataforma ao redor do mundo.
  • 26 países já colocaram a ideia em prática, incluindo o Brasil.
  • US$ 1 milhão: valor aportado pelo Google para o financiamento de cooperativas de plataforma ao redor do mundo.
    EVENTO INTERNACIONAL
    Mais debates sobre o Cooperativismo de Plataforma já têm data marcada: entre os dias 7 e 9 de novembro, será realizado, em Nova York (EUA), o Congresso Internacional de Cooperativas de Plataforma, em parceria com Columbia University e The New School. O evento é promovido pelo Consórcio Internacional do Cooperativismo de Plataforma (https://platform.coop/), sediado em NY e fundado pelo pioneiro do próprio movimento Cooperativismo de Plataforma, Trebor Scholz. Vale destacar: a OCB participa do comitê internacional de promoção do cooperativismo de plataforma.

Fonte: Somos Cooperativismo

Bruno Oliveira

Bruno Oliveira

Analista de Comunicação do Sistema OCB/RJ. Formado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte, MBA em Marketing e Comunicação Empresarial e em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais.

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