Em uma sociedade marcada pelo individualismo e pela competitividade desenfreada, o cooperativismo aparece como uma das formas sustentáveis para a manutenção de um relacionamento saudável das pessoas na busca por objetivos em comum, segundo o professor e filósofo Mario Sergio Cortella.
Autor de vários títulos sobre comportamento humano e questões sociais na atualidade, Cortella esteve no Espírito Santo recentemente para falar sobre a importância da responsabilidade social nas organizações para empresários de Venda Nova do Imigrante, a convite do Sicoob Sul-Serrano.
Ele ainda destacou, nesta entrevista exclusiva para a assessora de imprensa do Sicoob ES, Vera Caser, a importância da união como fator vital para a conquista de resultados duradouros e sustentáveis nos negócios e na vida em sociedade. Confira a entrevista abaixo:
Professor Cortella, nesse mundo cada vez mais competitivo, o que as pessoas podem fazer para que a sociedade seja um pouco melhor?
O primeiro passo é entender algo que disse um dia Mahatma Gandhi, quando ele afirmou: “Olho por olho e uma hora acabamos todos cegos”. Portanto, há um limite para a competitividade. Ela precisa ser olhada como uma forma de estímulo ao aumento da nossa capacidade de ação, de trabalho e de produção, mas não pode ser a autofágica, destrutiva.
Ela não pode, de maneira alguma, ameaçar nossa capacidade colaborativa, porque nós somos animais muito agregados nas nossas relações de dependência. Deste modo, essa competição desarvorada, embora produza momentaneamente um nível de riqueza para uma parte das pessoas de maneira mais vigorosa, destrói parte do futuro, pois coloca uma condição que acaba gerando perturbações à vida em comunidade.
A competitividade também deixa um rastro de confrontos que acabam eliminando as condições de convivência. Por isso, a colaboração é uma marca que a gente pode ter.
Eu acho que uma das coisas que a gente deve formar, especialmente nas crianças e depois nos adultos, é a percepção de que na vida a regra jamais deve ser cada um por si e Deus por todos. Tem quer ser um por todos e todos por um.
Este é um movimento que melhora a condição de um futuro que seja muito mais integrado, mais feliz e que tenha uma abundância que não seja mero acúmulo.
O senhor poderia dar três dicas que as pessoas conseguiriam seguir no trabalho e que as ajudariam a criar um ambiente melhor no ambiente corporativo?
A primeira dica é tentar organizar não apenas uma equipe de trabalho, mas uma turma.
Quando você estava na escola básica, tinha a sua turma. Você cresceu e hoje tem a sua turma de amigos, do clube, a turma de afeto, etc. A turma é aquela em que a gente dá o sangue pelo outro. Enquanto você tiver alguém da sua turma, pode ser que horário for, eles vão te socorrer ou estar onde você precisa. O espírito de turma é algo que é muito mais conectado do que o de equipe.
A segunda delas é entender que hoje em dia a noção de competência tem que ser mais coletiva.
Há 30 anos, eu diria que a minha competência acaba quando começa o do outro. Hoje não mais. A minha competência acaba quando acaba a do outro, seja num grupo, numa área ou numa diretoria de uma cooperativa. Se alguém perde competência, eu perco. Se alguém ganha, eu ganho. Por isso, a regra mais inteligente para quem deseja estar no campo é: quem sabe reparte e quem não sabe procura, porque se alguém sabe algo e não reparte isso, ele enfraquece o grupo e a si mesmo. Se alguém não sabe algo e não pergunta, enfraquece a si mesmo, enfraquecendo também o grupo.
A terceira grande condição é a presença da alegria.
O contrário de seriedade não é alegria, e sim descompromisso. Um grupo compromissado é aquele que se dedica à intenção do atingimento de metas e que faz aquilo que é necessário para o sucesso, sem perder a alegria. Ela move em nós energias que aumentam não só o nosso bem-estar, mas também a possibilidade de estarmos juntos de um modo que seja mais admirável. Claro que a alegria não é ficar brincando o tempo todo. A alegria é a possibilidade de não recusar os momentos em que a comemoração, o reconhecimento e a festividade devem vir à tona.
E na família, como os pais podem conservar a harmonia e um bom clima com os filhos para conseguirem competir com a internet e com as influências externas?
É uma consideração e uma orientação. A consideração é que a família não é e nem deve ser uma democracia. Adultos que entendam a família como uma democracia costumam fracassar no processo de formação dos filhos.
Uma democracia pressupõe direitos e deveres iguais. Numa família, os adultos responsáveis por crianças e jovens são as autoridades. Não há direitos nem deveres iguais. Que exista dignidade e respeito, não democracia, isto é, adultos que têm a tarefa de comandar, sem brutalidade e sem nada que arrisque a dignidade da outra pessoa, mas com firmeza naquilo que fazem.
Muitos pais acabam tendo uma submissão aos seus filhos e geram uma convicção muito perigosa nos jovens de que desejos são direitos. Desejos não são direitos, e sim vontades que precisam ser realizadas a partir de esforço.
Na minha casa, fizemos, quando meus filhos eram pequenos, a cada três meses, a semana sem micro-ondas, o que nos fazia ter que tomar todas as refeições daquela semana em conjunto. No começo, isso produzia um distúrbio, mas, aos poucos, aquilo se tornou um prazer imenso.
Outra coisa que fiz com os meus filhos e faço com os meus quatro netos é ensiná-los a cozinhar, desconectando-os e gerando neles a satisfação de terminar um prato, de ajudar, a servir e ouvir o outro dizer o que achou. É claro que você não vai colocar uma criança de quatro anos para manipular uma faca, mas ela pode lavar o tomate, descascar a mexerica, catar o feijão, e se envolver naquilo.
É muito comum você ter famílias que colocam os filhos para participarem da elaboração. A cozinha exige paciência, e o desenvolvimento dessa virtude faz com que a gente se desconecte daquilo que é desnecessário.
Você acha viável uma família propor uma semana sem internet, por exemplo?
Não tem necessidade, porque a internet está muito conectada ao nosso modo de vida, comunicação, capacidade de vigilância e trabalho. Mas, pode-se fazer com que ela seja colocada de um modo que não é contínua. Há muitas pessoas que já fazem isso hoje. Eu conheço muitos jovens de 18, de 20 anos que, quando chegam num restaurante, por exemplo, ou numa balada, fazem uma combinação de todos deixarem os celulares sobre o centro da mesa. Ou seja, é possível interromper a rotina de maneira que possamos ter outros olhares.
Como o cooperativismo pode contribuir para a transformação do meio em que vivemos?
O cooperativismo é a única alternativa que nós temos para não desagregar o conjunto da humanidade. Há muitas sociedades que são cooperativas, mas nas quais não há janelas para o termo cooperativismo. Eu conheço muitas comunidades – especialmente em nações indígenas no Brasil ou mesmo em grupos na África, nas sociedades tribais – que têm uma vida cooperativada, sem que haja o conceito formal ou a necessidade de organização de uma estrutura.
No conjunto da humanidade, o cooperativismo, com a sua percepção de trabalhar junto, de colaborar e de partilhar o resultado daquilo que tem, é a única maneira que temos de não apodrecer nossa condição de vida coletiva. Por isso, é sempre uma forma de orientação daquilo que vai impedir a falência da nossa capacidade de vida em conjunto. Portanto, não é isento de questões, problemas e turbulências. Mas, tal como disse Churchill, que a democracia é o pior dos modos de governo, exceto todos os outros, nós também podemos dizer que o cooperativismo é a pior forma de trabalho em conjunto, exceto todas as outras.
Fonte: Sicoob ES